sábado, 24 de outubro de 2009

O binômio Essência e Aparência

Mente humana: suspenso labirinto da alma; alma esta que não sabe, não vê, não sente a sua própria identidade


O ser humano tem de fato se preocupado com a análise da sua verdadeira constituição, enquanto ser pensante, tanto que elaborou, ferreamente, muitas investidas em conceitos epistemológicos acerca do que um dia pudera sintetizar o seu pensamento, o que lhe fora contribuinte na origem de suas idéias, ou mesmo no que consiste a sua essência. O que corrobora tamanha “odisséia” introspectiva do homem são as provas que foram deixadas por pensadores, artistas, os quais possuíam a idéia da virtualidade de uma forma tão hodierna. Em tempos contemporâneos, esse aspecto virtual tem se concretizado e fincado na mente do homem, por isso a sua edificação constante (tal como é vista e tachada de ruído comunicacional) norteia perfeitamente as mútuas relações.
Assim dizia o estudioso McLuhan, “o homem vive em uma Aldeia global”. De fato, em sentidos dessa globalização, ouvidos, vozes, pensamentos, cores, tudo, permeia por uma encruzilhada internacionalmente coletiva. Diz-se que a razão do mundo é instrumental devido ao seu não comprometimento com o que é essencial ao homem. Este é cercado por idéias, culturas, que suspiram e almejam esclarecimento real; não se desvinculam, porém, do falso, unânime e onipresente. Aí está uma perfeita “aldeia” para esse falso entendimento da completude do Outro: a comunicação globalmente simplificada e alastrada.
Certa feita, um grande escritor se comprometeu e construiu para o esboço público a personagem, literalmente psicológica, de uma das suas maiores obras, a Capitu de Dom Casmurro. Machado de Assis demonstrou, mesmo de forma superficial, a personalidade ateada por dissimulações, principalmente em suas falas. Os “olhos de ressaca” de Capitu se prontificaram para futuras análises e descobertas acerca daquele comportamento. Na verdade, não se sabe ao certo qual seria sua essência, ou se realmente o que ela aparentava fazia parte da sua originalidade.
O ruído na comunicação seria justificado pela falta de revelações por si própria. A Capitu (ou o Machado) fez exaurir todo tipo de compreensão acerca de seu comportamento duvidoso, ocasionalmente cifrado, de poucas e inatingíveis palavras. A partir dessa idéia é que se pode pensar (cem anos depois da Capitu machadiana) no modelo cibernético da internet: conversas curtas, codificadas e que muitas vezes não se esclarecem em si mesmas, tal como Capitu. Não se é capaz de sentir o Outro, de compartilhar suas “magias”, mas apenas de lhes atribuir o fragmentado, aparentemente essencial.
Essa questão do Outro, da ausência de ser e de compreender o Outro, não é só “ofuscamente” tratada por estudiosos atuais. O grande Immanuel Kant outrora fizera vigorar o pensamento universal para a mútua compreensão através do chamado Imperativo Categórico. A mesma categoria, que o homem possuía nas suas “rasas” relações, deveria ser canalizada para o entendimento das mesmas relações, agora aprofundadas. O imperativo estaria nas regras, as quais cada um manteria com o Outro: “agir e pensar de modo que a essência de seus atos seja universal”. O que é aparente pode perfeitamente ser modificado, porém a essência jamais se esquiva da sua origem real. Quaisquer que sejam os acidentes, já segundo Aristóteles, a sua essência prevalece. Então, o Outro pode ser revelado!
Em certa ocasião, quando da vinda da corte Portuguesa em 1808, esta trazia em si o aspecto da fina e tradicional “beleza” européia por suas damas, com seus turbantes e ornados vestidos. Pois bem! Tudo aquilo indicaria que os turbantes simbolizavam uma infestação grande de piolhos e a falta de cabelo, além dos vestidos cobrirem o vazio que havia na essência daquelas mulheres.
Unir, pois, tal capacidade de se mostrar “descaradamente”, de fazer emergir das entranhas o seu fabuloso nicho compreensível, o mais intimista de um homem, talvez não seja ainda uma atitude convicta de verdade. O ser, na mais profunda solidão, distante das várias conjeturas acerca do seu mundo, revela-se mais completamente e sem exageros. O que dirá José de Alencar em sua obra Senhora, quando a personagem Fernando Seixas, em seu isolamento do mundo socialmente hipócrita, no qual costumava viver, nada mais se revela como um homem simples e sem muitas posses, longe dos falsos escrúpulos a que se fazia entender, com uma aparência fidalga. É exatamente uma abertura à discussão do paradigma da ação humana de viver pela aparência, completamente empobrecida pela falsidade, que pode ser rebuscada a idéia do por que da maioria do ser humano agir de tal forma.
O jogo da Essência e da Aparência será eternamente a grande porta de estudos, em que serão encontradas mentes brilhantemente perseguidas por tal vício, o vício do obscurantismo da alma, da cópia, da infinita insatisfação do ser singular e não aparentemente original; afinal, as aparências enganam!

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

“Loucura do filósofo: delírio dos deuses!”

Como um dos primeiros pensadores ocidentais a se preocupar com questões estéticas e a retratá-las na forma de temas universais, como o amor, Platão sentiu a necessidade de fazer desse sentimento o verdadeiro “caminho místico” ao belo, de forma a fazer-se entender sua representação absoluta, verdadeiramente a sua essência. O bem, o Saber e a Verdade são algumas das muitas virtudes encontradas no lugar (mundo) das idéias eternas, onde o filósofo coloca toda síntese do seu pensamento e toda idéia de bem estar supremo, o qual contribui para harmonia e equilíbrio constante de seus elementos ideais. É por meio de diálogos, dentre os quais Banquete e Fedro, que se inicia a temática de EROS na relação humana e sua retratação como instrumento de ligação com a arte, mais especificamente a retórica em comunhão com a verdade: o amor liga-se ao bem, que por sua vez embute-se na sabedoria e, portanto, na verdade. É nessa busca pelo correto que se encontram os valores estéticos platônicos.
Fedro é um diálogo em que Platão, através de seu mestre Sócrates, explica a forma correta de se viver artisticamente, agindo consoante o amor (EROS) puro – longe de ser apenas imaginado como uma paixão carnal ou pederástica, mas um sentimento que torna o amante capaz de grandes feitos por seu amado, devido ao delírio e à loucura que os deuses inspiram nele. Explica também que a retórica transforma-se em arte a partir do momento em que, pela dialética, é possível conhecer as qualidades da alma e suas múltiplas sensibilidades à persuasão da eloquente oratória, bem como a sabedoria daquele que dribla a verdade com algo verossímil, chegando perto do que é provável. Centralizando temas de amor e de retórica, essa obra esclarece a filosofia platônica e, paulatinamente, demonstra a possível relação do filósofo com o belo, a sua visão do esteticamente válido e agradável, como a idéia do delírio.
O amante da verdade aos poucos acaba por enxergar a essência da beleza naquilo que ele considera belo. Geralmente, ele inicia sua contemplação de uma forma primitiva – por estar situado no mundo sensível (um mundo que leva ao erro) - depois, através da recordação, evolui as idéias.
Entende-se que cada ser do mundo sensível corresponde a padrões ou a arquétipos do que é a absoluta existência no mundo das idéias (mundo da verdade): a alma transmigra e recorda o que o espírito já contemplou antes de sua encarnação terrestre – verdade, beleza, bem. Para Platão, ao encontrar um ser humano em estado de supremo êxtase, causado pela contemplação do esteticamente belo, trata-se do processo do recordar, tendo em vista que a natureza da alma, por ser imortal (eterna), tudo conhece e tudo já viu, bastando a ela que o seu aspecto racional sobrepuja ao sensualmente material.
A noção de estética está na enfática idéia de dois mundos. O mundo das idéias puras concentra toda grandiosidade da beleza em seu aspecto absoluto. Já, qualquer ser do mundo sensível se estabelece por sua beleza material, que, na medida em que há uma ligação desses seres com o mundo ideal, torna-se fortificada e, conforme as recordações do momento da evolução da alma, seu conceito de matéria passa a um caráter espiritual. O belo será ampliado, suas concepções estarão dotadas de verdade e quando contempladas compartilharão de um profundo deleite - o delírio dos deuses.
Elemento fundamental para a alma, o amor é o sentimento supremo, o qual inspira o ser para as mais belas atitudes de profunda relação com o belo e de grande admiração. Deixando-se conduzir pelo amor, o delírio, que é causado no amante, contribui para a síntese de uma sã consciência, repleta de sabedoria, sendo ela capaz de alertar o mundo acerca dos males e da desordem que porventura possam ocorrer. Aí está o sentido estético desse amor: Platão afirma que "EROS é uma força que instiga a alma para atingir o bem" (CHALITA. 2004:56), este tem na beleza a sua representação naturalmente simplificada e visível; por existirem diversas formas de beleza, a sabedoria seria a maior de todas, sendo concretizada pela verdade a que o filósofo detém. O papel desse sábio é ligado à exclusiva contemplação da beleza, pois só assim ele chega à ordem do que governa. Platão diz que “é indispensável aos homens atribuírem-se leis e viverem conforme essas leis” (Ibid) , isto é, a idéia de ordem e tudo o que for relacionado à simetria, ao equilíbrio e à perfeição – seja do estado da alma, seja do próprio aspecto material das coisas –encontra-se reservada na sua idealização, em seu mundo “supra-sensível”.
O mundo das idéias – representado pelo Céu platônico em Fedro – contém a verídica e única idéia da realidade, a qual se encarrega de harmonizar todo o conjuto daquilo que ela é nutrida (Ciência, Beleza, Sabedoria e Pensamento), de maneira a equilibrá-la. É um plano em que todos os elementos estão sob o domínio de tudo o que for de aceitação da Estética. É um mundo no qual reside o esteticamente perfeito, onde se concretiza a existência do essencialmente superior; um mundo condizente com tudo o que Platão pensava do belo, do deleite contemplativo:
“Para Platão, dentro da sua grandiosa visão idealista do mundo e do homem, a beleza de um ser material qualquer depende da maior ou menor comunicação que tal ser possua com a Beleza Absoluta, que subsiste, pura, imutável e eterna, no mundo supra-sensível das idéias” (SUASSUNA. 1996: 41).
Uma prova de que o filósofo se preocupa com a beleza artística está em seus argumentos acerca da retórica. Em Fedro, Platão afirma que o amor, por ser o grande motor da alma humana, pode indiscutivelmente impulsionar o saber. Portanto, a retórica só se torna uma obra de arte esteticamente notável, se não se privar do conhecimento dialético, o qual esclarece o homem sobre a verdade dos fatos e ajuda na distinção do que é mais ou menos persuasivo. Movido por tais condições um retórico passa a exercer a arte, o belo.
“[...] não é possível fazer discursos artísticos naturais, quer se trate de ensinar ou de persuadir, posto que se não conheça a verdade sobre os objetos a respeito dos quais se fala ou se escreve, se não se estiver em condições de defini-los e de dividi-los em espécies e gêneros, se não se houver estudado a natureza da alma e determinado quais gêneros de discursos se adaptam às suas espécies; se não se tiver redigido e ordenado o discurso de tal modo que ofereça à alma complexa um discurso complexo e à alma simples um discurso simples” (PLATÃO. 2007 : 123).
Esse ideal de Retórica resume o objetivo final que Platão diz ser o necessário a todo filósofo: o reconhecimento da verdade em sua totalidade, em face de um esforço metódico, oriundo de um imenso desejo de chegar à verdade, racionalmente, sobrepondo-se ao doxa (opinião). Conjuga-se ao sábio a razão e a intuição, de modo que o verdadeiro é um aspecto universal e não se reduz a pequenas definições, as quais dizem respeito à sensibilidade humana.
Ao tratar da eloqüência com que os retóricos devem manifestar a sua astúcia, é visível a condição que se quer passar da “loucura”. Loucura no filósofo nada mais é que o delírio dos deuses (mania), aquele inspirado por EROS, mais precisamente. Repleto de entusiasmo, o sábio, ao ver o objeto, incita o aparecimento de “asas” (uma espécie de transes) para a busca do belo em si, do prazer. Assim é que deve ser encontrada a eloqüência para os discursos.
Ontologicamente, o que Fedro reflete através de discursos socráticos é uma suposta abstinência do puro prazer carnal, por vezes difícil ao ser humano, mas que é totalmente alcançada pelo superior, o filósofo. Só esse ser pode fazer de seu objeto um sujeito amante e delirante.
Dessa forma, o amor é algo comum dos dois mundos, é o melhor de dois mundos. Sua magnitude, porém, associa-se à beleza estética idealizada e não é sentida de maneira suprema, a não ser pela boa loucura. Portanto, percebe-se que a bela essência sempre será almejada pelo amor do mundo sensível: a humanidade, segundo Platão, sempre tenderá à busca da perfeição estética.


Referências:

PLATÃO. Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2007;
CHALITA, Gabriel. Vivendo a Filosofia. 2. – Ed. - São Paulo: Atual, 2004;
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Recife: Editora da UFPE, 1996.