sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O ilusionismo de Welles

O mágico e sua versão mais lúdica. (Foto: F for Fake/1973 )

A obra pseudo-documental F for Fake do cineasta Orson Welles possui majestosas aglutinações de mistérios que giram em torno da fraude a que a arte se expõe, ou é exposta. Em torno de ações, palavras, sentimentos, todos duvidosos, cujos princípios podem ser de fidedigna autenticidade, contudo ter uma projeção de baixo crédito ante quem os analisa. Dessa idéia da argumentação do original dentro das produções humanas, e da ciência da ideologia, traçando, de certa forma, o debate acerca da desconstrução e da questão da sensibilidade, é que o filme se encarrega de, não só mostrar, mas argumentar com o espectador até a sua própria veracidade. Não há o intuito de transparecer o obscuro caminho entre a verdade e a mentira. O que há de objetivo é a exposição da complexidade por trás do que se apresenta como autêntico e como falso, no qual o “analista” deve saber discernir a originalidade dos signos que lhe são captados ou sentidos.

Funcionando como uma espécie de desafio investigatório para o espectador e para as próprias personagens, existe o jogo de percepção, em que as sucessivas tomadas atrativas são os instrumentos para uma possível descoberta do mistério. Isto é, em cada tomada há uma estreita ligação com o curioso, com algo que está para ser desmascarado, quando na verdade tudo não passa de conjecturas, as famosas sombras das cavernas. Nada mais que uma autêntica metalinguagem da qual Welles se apossa, a fim de relatar, através da sétima arte, a verdadeira possibilidade da existência de falsificadores de obras de arte, assim como também, por meio da atuação – portanto, com a ilusão causada pelo ator – a possível existência de que tudo possa ser falso. Mas ele mesmo é quem diz na película que o filme está para começar, não querendo talvez enganar os espectadores.

Esse trocadilho confuso de demonstração do falso pelo falso e da arte pela arte, leva a maiores questionamentos. Afinal, pergunta-se qual a credibilidade disso tudo, considerando qual é a “verdade” dentro das quimeras da arte. Para corroborar melhor com o assunto, transporta-se aqui tal idéia de outras reproduções artísticas de acordo com o que Walter Benjamin afirmou sobre a aura da arte, visto que ela tem relevância com as mais naturais produções: aquilo que é considerado autêntico é intransponível em outras formas, em outros signos, uma vez que se trata de algo singular e inigualável. Isto é a aura.

A obra de arte é inevitavelmente norteada segundo contextos históricos diversificados, tendo em vista a evolução de seu conceito enquanto objeto de retratação sensorial no comportamento humano, valendo-se da liberdade e do que esta pode originar em cada cultura. Em outras palavras, a cultura tem sua tradição, assim como sua forma de expressão. Estando a arte contida em culturas, então ela possui suas peculiaridades as quais traduzirão modificações, gradação da complexidade e outras visões acerca de como o seu retrato possa ser apresentado.

O debate que é extraído de F for Fake é de uma grandiosidade reflexiva, pois há uma gama de interpretações, de culturas no mundo relativista das verdades. E isso depende do conjunto de signos com que se convive, ou seja, do cotidiano repertório, da educação.

Até que ponto a verdade deve ser falsificada ou mesmo desconstruída? Jacques Derrida compreendeu que o sentido de desconstrução, tal como uma releitura de obras significa uma nova versão linguística dada a esta obra. O que, ao invés de ser um ato fraudulento, torna-se uma atitude reveladora que estava escondida nas entrelinhas. Essa é uma maneira de pensar o que o filme deixa para reflexão: as fraudes artísticas podem até estar inseridas na idéia revolucionária do "aquilo que poderia ser". A verdade pode estar nessas recriações. Assim como dizia a dramaturga Susan Glaspell, na personagem Clair Archer, em sua peça O Limiar, “de tudo que flui dentro de nós” é preciso “deixar que venha à tona! Tudo que nunca pensamos em usar para criar um momento – deixar fluir em direção ao que poderia ser! [...] Você ainda não aprendeu que o melhor lugar para se esconder é na verdade? Por que você não me acredita quando eu falo a verdade? [...]”.

Verdades ou mentiras, dependendo da insinuação e do intérprete, até toda a ilusão causada por um mágico vem a ser uma atividade absoluta, portanto verídica. Tratar da arte e de seu valor crível foi talvez o interesse maior de Welles no filme, ainda mais por ela (arte) ter sido retratada nas dúbias formas cinematográficas, mais especificamente do ator em si.

Não diferente do poeta, o ator sabe perfeitamente inibir os seus verdadeiros sentimentos e mostrar-se sob uma óptica altamente carregada de falsidade, até esta falsidade, porém, deve ser um ato fiel – dentro da verdade do trabalho de atuar. O poeta, já dizia Fernando Pessoa,“ finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente [...]”. Portanto, a arte do fingimento é ou não é uma falsificação, uma reprodutibilidade dos retos sentimentos? Essa indagação é como um eufemismo quanto ao papel dos inúmeros falsários - dentre eles Elmyr de Hory e Clifford Irvingos, famosos falsificadores, retratados no documentário- pois não se sabe a intenção, tanto do autor quanto de quem copia a arte. Pode-se enfatizar a hipótese do ensejo pelo mistério do que virá, o mistério de algo com outras visões, não unilateral.

Desde que Platão, audaciosamente, propôs o mundo das idéias entornado por verdades absolutas, chegou-se à análise banal de que por meio do bem, tem-se a beleza e daí a sabedoria e, depois, a verdade. Ao longo da história, foi visto que nem sempre a intenção do bem é feita com verdades em mente. Dessa forma foi preciso mostrar verdade e mentira combinadas, tal como F for Fake realizou, esclarecendo que é assim que elas se mostram – complexas, confusas, duvidosas.

F for Fake (Orson Welles, 1973):


Citações:
• PESSOA, Fernando. Poesias. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997;
• SANDER, Lúcia V. O Teatro de Susan Glaspell. Lúcia V Sander, 2006.

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