quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Sou um errante e outros tantos

Um garoto e seus tormentos: porque sonho, eu não o sou...(foto: Lèolo/1992)

Ruelas infectadas, lixos espalhados, ratos por sobre os pratos; feirantes ávidos, frutas e verduras pelo chão, entre caixotes e pernas escrotas provindas da multidão; tomates estranhos, vindos de longe, como andarilhos que vão e que voltam, mas que só trazem um azedume, um odor que beira à mesmice da vida, uma vida empacotada pela queda dos não merecidos, de operários esquecidos. Campos que vagam entre os olhares, em câmera lenta, e que fazem tudo parecer mais leve, completamente fora do lugar comum. É de repente que surgem. É de repente que aquele ambiente acinzentado dá lugar ao esverdeado, ao ambiente que vaga nas ilusões e fantasias de uma criança. É tudo muito de repente, como uma mistura de imagens, uma em cima da outra: uma cena, um movimento, um devaneio. E, um passo em falso, já se está no por vir, no imaginário pueril de um Lèolo, entre outros tantos.

Leôlo Lazone, como assim prefere ser chamado, é um garoto que a partir dos 11 anos recruta-se em ser o vigilante capaz de compreender tudo o que se passa na sua conturbada família. Ele sonha em viver fora do que seriam as prisões mentais que abalam seu entorno familiar. Quer ser diferente. Assim se julga. Na verdade, ele vive a sonhar, sempre. Seria uma tentativa de refúgio. Ele quer estar livre daquele ambiente do qual brotara a obsessão fecal de seu pai, as ordens e superproteção de sua mãe, as manias e o medo de seu irmão mais velho, as libidinosas e anacrônicas aventuras de seu avô e as peculiaridades outras de suas irmãs. Era simplesmente isso. Um refúgio embasado na poesia de Réjean Ducharme, encontrada nas páginas de seu livro L'Avalée des Avalés, do qual Lèolo repete uns versos, de tempos em tempos: “Porque sonho, eu não o sou. Porque sonho, eu não estou louco.”

Fosse o real motivo de seu retiro social causado pela suposta insanidade de sua família, fosse pela má condição sócio-econômica a que estava subjugado, o fato é que o menino Lèolo guardava um profundo senso de exclusão no seu íntimo. Sentia-se como que subtraído das suas origens. Na quimera do tomate siciliano, que carrega os espermatozóides de um camponês e que fertiliza a mãe do garoto Lanzone, apresenta-se, de maneira espetacular, o estopim de toda uma vida marcada pelo sentimento de abandono e feixes de uma rara sensibilidade. O abandono se daria da sensação do “fruto” abandonado, de um tomate deixado para trás; a melhor alusão que o garoto pode fazer ao pronunciar o seu suposto e querido lado italiano da família e sua separação das origens. Pois ele estaria naquela fecundação animalesca da mãe com o tomate carregado de espermatozóides. Seu pai, dizia ele, era "o camponês italiano"; sua origem era siciliana. Não seria, pois, um bruto trabalhador fabril, um operário rude, marcado pela acentuada pobreza e pelo meio e seus fatores desumanos que o fizeram padecer da ignorância que tanto o afetava e o afastava de Lèolo.

Era quase uma nítida menção ao tema central do filme: Lèolo, um caçula e seus tormentos. No entanto, o tema não estava somente nos problemas psicológicos que traziam seus familiares - sobretudo seu irmão, Ferdnand, o qual nutria um medo adolescente pela agressão que sofrera e uma mania de estar em forma; ou sua gorda irmã, a qual passava seu tempo entre insetos, lagartos e vermes no porão de casa -, não eram esses fatos o principal desenrolar no mundo do garoto Lanzone. O tema estava igualmente na posição social a qual se encontrava a família de Lèolo: o meio que a formou, que a trouxe àqueles costumes e àquela insipiência. O meio no qual não desejava estar Lèolo, mas que ao mesmo tempo o ajudou, criou-o, e o fez ser crítico de si mesmo e dos seus. Misturava-se a esse meio um mundo que surgiu do único objeto capaz de o “ilhar” da rotina de sua família, o objeto que poderia fazer a diferença entre Lèolo e os seus. O objeto era mais uma vez, e sempre, L'Avalée des Avalés. O livro que o projetou, que o fez pensar (e até demais) e declarar estar num ambiente onde se tecem regras para os “intestinos fedorentos” de seus moradores, regras das quais ele não compartilha, pois ele critica, ele sonha, e por isso não o é. Pois ele não pertence ao ser e ao estar de sua família, no entanto ele a vigia, critica-a, ele não é igual.

Lèolo apenas lê, apenas narra e imagina. Lèolo tem o que deseja. Lèolo tem a sua vizinha; Lèolo tem as mulheres que quer, ele sacia seus desejos com suas imagens, e as projeta em seus sonhos ou em um pedaço de carne! Lèolo apenas sonha, e não o é, tampouco é um desconcertado membro da família. Lèolo é simplesmente isto: o seu por vir. É uma obra completa em si mesma. É um filme que fala por si, é adjetivado em suas sequências: por elas dá a forma e o porquê às suas cenas tão social e psicologicamente esclarecidas. Entre um mundo ideal, esverdeado, um campo longínquo, onde possa correr livre e perfeito, e outro mundo onde se concretizam seus escatológicos e surreais costumes, Lèolo sonha. Mas porque sonha, não o é.


Lèolo (Jean-Claude Lauzon, 1992):
http://www.imdb.com/title/tt0104782/

Um comentário:

  1. I've enjoyed this text; It shows the true feelings of a lost little boy explaining, thus, how far is the waylife.

    that's all

    di!

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