terça-feira, 16 de novembro de 2010

de um fôlego, uma ode

Um nome, uma vida, uma obra inteira.
O clássico do que continua em nós.


Grande Ludwig!
Tu outrora em solidão
Não foste compreendido,
Tens o brilho e a genialidade das criações.
Inexorável olhar,
Que dissimulara uma alma lancinante.
Não imitavas, mas criavas o ar condoreiro da harmonia lírica.
Foste tu autêntico!

Ludwig... Ludwig...
Tua alma, complexa e inexplicável...
Entornavas uma bruta genialidade
Que atravessou séculos...
Tabuleiro e Forte à ode clássica...
Sublime sonata à lua clara...
Tua alma, insigne rastros de vertigem...
Ambiente poderoso, fabulosa esfinge...
“Mistério em mãos de ferro” e mente hábil...
Bravura sedutora e harmônica.
Tua alma, a liberdade .

Ludwig... Inteiro e solitário.
Untuoso tocar das teclas do piano, feitiço de mãos criadoras.
"Fonte e cabeceira" das mais eruditas canções e sinfonias.
Tua alma, poeta e grande orquestra ao luar.
Ludwig, grande Ludwig!
És eterno mestre,
A primordial das figuras sinfônicas imortalizadas.
Encontravas na brisa das cifras magistrais
O maior recôndito musical,
Porta de abertura ao humilde e austero céu
E nicho das tuas fabulosas ondas sonoras e ignotas melodias.

Tua alma, desconhecida e aclamada,
Faz florir jardins de interrogações...
Sustento basilar da música...
Quem dera eu possuir-me de tamanha audácia
E insegurança segura...

Sim, Ludwig!
Tua alma, temperamento enigmático.
Quero eu me apossar de tuas mãos velozes!
Quero eu me ver em suspenso sarau
Ao tocar os dedos em um piano e deixar soar livremente
Os clássicos “ruídos” de Moonlight.

És rochedo infalível...
Tua alma, flexível e ardente,
Migrará eternamente por entre os caminhos dessa odisséia,
Pela qual permeia o universo clássico...
És cativante e senhor das magistrais adaptações poéticas.
Das tuas ríspidas ações emergia a tua conduta
Magistral e artística.
Inocente, triste, seguro das incertezas...

És o simples,
Tímido despertar.
Valentia heróica e desafiadora de regras.
És grande,
És Ludwig! És Beethoven!












quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Whisky e Leminski

Não fosse isso
e era menos
Não fosse tanto
e era quase

****
qualunque coincidenza
è mera somiglianza
mentre chisciotte pensa
sancho gratta la sancha panza

ogni cosa sia uguale
che il rosso sia verde
l'azzurro sia giallo
e il sempre sia giammai


****
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase [...]


***
a los dioses más crueles
juventud eterna

ellos nos dan de beber
en la misma copa
vino, sangre y esperma


***
[...]Já disse de nós.
Já disse de mim.
Já disse do mundo.
Já disse agora,
eu que já disse nunca.
Todo mundo sabe,
eu já disse muito.

***
(Two Madmen)one of them spends his days
kicking lampposts to see if they light up

the second his nights
erasing words
from white paper

every neighborhood has a madman
it takes beneath its wing
not long till I can
be treated for the same damn thing


***
foi tudo muito súbito
tudo muito susto
tudo assim como a resposta
fica quando chega a pergunta

esse isso meio assunto
que é quando a gente está longe
e continua junto

(P. Leminski)


terça-feira, 13 de julho de 2010

Entre existencialismos e moléculas

As múltiplas ações ou comportamentos humanos e toda incerteza que os cerca, isto é, a relação instável entre o “vir a ser” e a consciência humana, a princípio poderia ser determinada basicamente e superficialmente pelas teorias sociológicas. O senso comum não estabelece uma engrenagem consistente que nos faça compreender a relação entre a capacidade de tomar uma decisão e os mecanismos orgânicos microscópicos, ou todas as reações dos processos celulares. O que pode tornar a discussão sobre essa relação mais compreensiva é o que a física quântica afirma sobre as possibilidades no espaço-tempo.

De maneira simples, posso dizer que esse fato é uma constante na natureza. Como não tenho os conhecimentos necessários em física quântica, julgo-me apenas como uma curiosa no assunto. Primeiramente, podíamos nos perguntar como a física quântica pode explicar a nossa consciência ou os nossos atos. Pois bem. O que seria real? Quais as possibilidades que o real nos oferece? Podemos considerar que este “real” é justamente o que podemos enxergar ou o que está dentro de nosso campo de ação/relacionamento. Desta forma, dizemos seguramente que dominamos o nosso real. Baseando-me, então, no que diz o filme Quem Somos Nós - no qual se tece uma verdadeira desconstrução sobre a nossa realidade, o nosso mundo - a nossa realidade, a que percebemos, é tão limitada, quanto é grandioso o que a ciência julga ser o seu o realismo.

"Um realismo científico baseado no mecanismo conjuga-se com uma crença estável no mundo dos homens e dos animais superiores como constituídos de organismos autodeterminados. Essa incompatibilidade radical na base do pensamento moderno responde, em grande parte pelo que há de dúbio e instável em nossa civilização" (WHITEHEAD, 2006: 100).

Inicialmente contraditória, podemos pensar que a idéia da existência de uma partícula (podemos nos considerar esta partícula?) em mais de um espaço e num mesmo intervalo de tempo se torna viável, se pensarmos que qualquer movimento se realiza de forma microscópica e por partes, “quadro por quadro”. Se pudéssemos nos colocar em “câmera lenta”, veríamos que a nossa matéria se multiplica num mesmo segundo. É um exemplo que nos reporta às possibilidades do real. Portanto, aquilo que não está em nosso campo de visão também é tão real quanto o seu por vir, a sua potência em ato, como já dizia Aristóteles. Constatamos que, conforme essa teoria molecular das partículas da matéria - nós enquanto matéria -, o real é muito mais do que o que o limitamos ser. Ele não é apenas o que nos está externo, mas o que nos é interno aos nossos mecanismos biológicos e mentais. A sua abrangência é invisível, por vezes, inimaginável.

Assim mesmo para a vida: as suas possibilidades, as chances que obtemos para nos construirmos enquanto seres humanos mais equilibrados, mais concentrados em nossas mentes e na força que possuímos, fazem-nos entender a grandiosidade da nossa natureza. Segundo Quem Somos Nós e para quem quiser assim se considerar, somos quase que deuses de nós mesmos. Assim, atores responsáveis pelo que acontece e o que se projeta a nós. Se estivermos cientes disso, o princípio existencialista que trazemos conosco é que, se porventura sofremos, ou não sabemos lidar com tantas incertezas, não soubemos utilizar a nossa potência, a capacidade de controle do mundo ao nosso favor. A idéia é basicamente esta. Portanto, são sempre válidos os questionamentos sobre a nossa origem, o nosso poder, a crise a qual nos encontramos, uma vez que podemos interligar essas dúvidas ao julgo de nossa força mental. Nada além de nosso pensamento para “revolucionar” o nosso particular, o nosso universo. Eu diria que é um verdadeiro panteísmo para com o saber e o poder.

O que pensamos, sentimos. Os mecanismos cerebrais acionam nossos pensamentos, que por sua vez acionam nossos sentidos: uma entropia molecular, um verdadeiro caos. É por meio desse caos que os fenômenos acontecem. Ou seja, do ponto de vista científico, “a ordem é redundante, enquanto o caos é informativo”¹ . E nas palavras de Edgar Morin² ,

"[…] cada vida é tecida dessa forma, sempre com um fio de acaso misturado com o fio da necessidade. Sendo assim, não são fórmulas matemáticas que vão dizer-nos o que é uma vida humana, não são aspectos exteriores sociológicos que a vão encerrar no seu determinismo" (MORIN, s/d).

Ademais, existem alguns esclarecimentos (ou confusões) sobre o que podemos chamar de adaptação biológica. Como nos adaptamos a determinadas situações, ou como o nosso corpo reage a elas. A distância que possa existir entre a fantasia e o que vivemos é apenas um estímulo em nosso corpo. Isto que dizer que, grosseiramente falando, somos os mesmos, com os mesmos estímulos (com umas “pitadas” de condicionamentos culturais, é claro). Em virtude de reagirmos, como defesa, a qualquer experiência desconhecida, podemos pensar o quanto nós nos assustamos, se temos um pesadelo, ou o quanto nos deleitamos, se simplesmente pensamos em algo prazeroso. É tudo uma questão de costume ou adaptação da mente e do corpo às nossas ações.

É, pois, importante que pensemos no que a consciência pode gerar. Os pensamentos que nos norteiam podem ser tão favoráveis à construção das relações sociais, quanto o funcionamento do nosso organismo o é. Podemos sustentar, veementemente, que o otimismo é a chave para o nosso equilíbrio e desenvolvimento mental.


¹-DANTON, Gian. A teoria do Caos. s/d. em http://www.alanmooresenhordocaos.hpg.ig.com.br/artigos20.htm

²-www.mundocultural.com.br/artigos/Colunista.asp?artigo=763

Referências:

• DANTON, Gian. A teoria do Caos. s/d. em http://www.alanmooresenhordocaos.hpg.ig.com.br/artigos20.htm
• Filme: Quem somos nós?(William Arntz , Betsy Chasse , Mark Vicente, 2005/ EUA)
• PESSOA JR, Oswaldo. A Física Quântica seria necessária para explicar a Consciência?. s/d em http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Cons.pdf
• WHITEHEAD, Alfred North. “A ciência e o mundo moderno”. São Paulo: Paulus, 2006. p. 100. In PIMENTEL, Ronaldo e OLIVEIRA, Tiago. Argumentos popperianos em favor do indeterminismo científico. s/d. em http://www.consciencia.org/argumentos-popperianos-$em-favor-do-indeterminismo-cientifico

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Memorável Chaplin: o pequeno gradioso

Ao encontrar na fragilidade a façanha do carisma, soube através da pequenez tornar-se grandioso

Um polêmico gênio de sensibilidade aflorada, banhado pela arte do sorrir, do doar-se sem medidas, do ser solidariamente humano com o humano. Esse gênio, poeta das ruas, nasceu num dia de hoje, 16 de Abril! Uma vida que se fez no silêncio visualmente personificado por gestos universais: a figura de um pária. O criador pensante desejou ser o reflexo dos esquecidos, ironicamente através do humor. Humor sofrido.

O criador, Sir Charles Spencer Chaplin, ou simplesmente Chaplin. A criação, Carlitos ou como queiram, Charlie, Charlot, para todos os gostos, tipos, raças e sorrisos. Era este uma solita figura em preto e branco, adornada por um chapéu coco, uma bengalinha de bambu e um terno paupérrimo, apertadíssimo e com calça “balão”. Ah, claro, além de um doce coração de manteiga! Nele, uma energia saltitante, extrovertida, que inesperadamente aparecia em situações atrapalhadas - não se sabe de onde - e ao mesmo tempo tímida, que invadiu telonas do mundo inteiro. A comprovação de toda uma técnica expressiva ainda não vista na época. A imitação de diferentes formas através de um corpinho lânguido. Uma figura diferente.

Assim nasceu o verdadeiro instrumento utilizado por Chaplin para suas críticas e sátiras à desigualdade e à alienação humana. Para ele não havia o que fosse proibido. Era “proibido proibir” os tradicionais chutes nos traseiros daquelas autoridades que o maltratavam - coincidentemente, quase sempre um policial. Sua vida, resumida em filmes. Sua consternação, insurgida de uma infância sofrida, representada pelo cômico. O mistério. Chaplin e Carlitos não eram dois, representavam apenas um. Todos, o imaginário do criador.

No mundo “chapliniano”, uma Inglaterra vitoriana repleta de influência hipócrita a qual o peso de toda autoridade austera se via sobre os pobres, em muito a perfeita diversão dos ingleses. O peso das ricas roupas ornadas, dos rígidos costumes se fazia sentir em suas almas complexas, inebriadas por egoísmo. Para os moradores dos surbúbios londrinos, só restava o enfadonho universo de suas mentes, onde seus sonhos podiam ser verdadeiros. A promessa de uma vida melhor. Sobre esta Inglaterra, há exatos 121 anos, Chaplin nasceu.

Seu espírito de sonhador, mais sensível do que racional, ser-lhe-ia o motor suficiente para sua arte. Alçar voo à desconhecida América lhe seria um desafio e também a vitória sobre a vida reconhecidamente miserável que teve, em termos materiais. Chaplin tão fácil não se abalou com as dificuldades que encontrou em terra estranha: perseguido por seu espírito irrequieto, polemizou a própria vida por suas preferências amorosas - mulheres bem mais jovens -, seus filmes intrigantes - sempre com um profundo caráter político-social -, assim como suas sinceras declarações contra o sistema da época.

A contradição em pessoa. A contradição presenciada no seu estilo de encarar a vida, tal como em suas palavras que apelavam para o eterno sorriso, para que se não deixassem vencer pela tristeza. A contradição presenciada num peculiar humor capaz de retratar o sofrimento de inocentes e a repressão nazista em The Great Dictator. Contradição presenciada até mesmo na história de um assassino em série (Monsieur Verdoux), curiosamente justificada nas palavras da personagem Verdux no momento em que é acusado de seus crimes, o qual afirma que a Guerra foi muito mais cruel do que ele. A Guerra, de fato, foi muito mais atroz do que aquele humor inteligente.

Criador de Carlitos. Criador da maneira simples de sorrir. Criador de outros clássicos como A King in New York, alusão ao colonialismo inglês e uma perfeita resposta aos americanos ingratos, responsáveis por um macarthismo injusto e o seu consequente exílio em 1953. Por essas épocas, a estranha América já não o tentaria sufocar, tampouco afundar a sua arte. Em 1972 voltou o gênio aos Estados Unidos, onde recebeu um Oscar honorífico por sua incalculável contribuição à indústria cinematográfica. Uma boa forma de redenção dos americanos.

Pelo amor e pela esperança, Chaplin guardou em si um brilhantismo de um poeta humanista, por isso é sempre lembrado, mesmo tendo se passado mais de quatro décadas de seu último trabalho no cinema, A Countess from Hong Kong. É lembrado nos detalhes e na simplicidade de fazer a arte acontecer. Uma prova de que o tempo é seu maior aliado, ao contrário do que ele próprio pensava, pois tinha ele medo desse tempo e do terrível esquecimento.

Chaplin, sempre lembrado como poeta da alegria e da dor, e agora pelos seus inesquecíveis 121 anos.

sábado, 6 de março de 2010

Humanidade: raça prodigiosa

À luz do teatro do absurdo.


Acho que não estamos bem certos sobre o que é a humanidade. Podemos crer que a literatura constata essa desilusão, esse desconhecimento da nossa identidade.

A era do mal do século é a perfeita referência que encontramos e que se estende no hoje através de nossa crise interior. Em sua “Glória Moribunda” nos enxergamos em seres que vibram a própria miséria e amargura. Uma porca miséria! Nunca a entenderemos. É escatológico, é brutal, cruel. Procuramos fortaleza em nós mesmos, mendigamos por respostas onde o vazio habita. Será que nosso grito pode ser tão primordial a ponto de calarmos a devastação, toda a crise que esvazia nossos sentidos?

Ridícula é a humanidade! E ainda bem que existiram (e existe) grandes pensadores (Becket, Ionesco, Arrabal)que souberam expressar a verdadeira consequência dos artifícios do homem em crise : o total desprezo pela lógica. Se eles conseguiram tal feitio foi porque se utilizaram do irracional (ou o que julgaram racional, o que na verdade não era) para tornar à luz o que nos é oculto. Muito da essência do teatro contemporâneo bebe dessa sabedoria e a sua literatura é absurda.

As técnicas dadaístas e surrealistas prezam pela “estranheza” expressiva e pela mostra do onírico, ou pelo que chamavam de “automatismo psíquico”. As técnicas do teatro do absurdo trazem à tona um pouco do dadaísmo e do surrealismo, juntamente a todo desatino das relações pessoais e o ridículo que há no homem. Pois, “o maior delito do homem é o de haver nascido”: são palavras de Samuel Becket (Esperando Godot), um dos maiores dramaturgos dessa corrente. É por isso que, de modo grosseiro, a existência do homem se resume aos problemas. Nossa existência é amarga, uma vez que somos a incerteza e vivemos estressados por não entendermos a ciência da vida, dos problemas. Inúteis!

Posso ver uma humanidade agoniada, depressiva e acuada no tempo e no espaço, sem sequer resolver-se por si. Não sabemos de fato onde estamos. Desconhecemos nossos passos e os rastros são confusos. Voltamos ao mal do século. A inutilidade habita em nós. Será que esse é o nosso único prodígio, reconhecer que somos hostis e que nada sabemos?

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Mel, Amor e Desejo


Em meio à tristeza, em meio a agonias e a incertezas, em meio à culpa, à perversidade, e até mesmo à morte, eu continuo a viver. É neste momento que eu sei o quanto a vida é um mistério, um mistério ainda maior do que a própria morte. Eu descobri que o que me faz viver é o amor. E eu amo para viver, porque, do contrário, do que valeria viver sem amar?

Eu soube escolher o que pretendo construir. Eu sempre soube a minha condição, e a culpa sempre esteve ao meu lado o instante suficiente para eu me dar conta da importância do desejo. É por isso que o meu desejo não é perverso. O meu desejo é perene, não se preocupa com glórias efêmeras, tampouco as nocivas à alma. A coisa mais simples é o que desejo.

O amor... Meu amor... Sinto uma imensa vontade de descobri-lo melhor, para assim afagar suas angústias, e ser seu amparo. Ser mel, mas também ser amarga o bastante frente à malandragem e suas óperas. Ser a diversidade, e, quem sabe, ser sua extensão.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter


"Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura.

O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem‑no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança.

Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer.

Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó.

Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder‑vos‑ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente.

De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista.

Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es?

Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário?

É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es?

Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo.

A Igreja diz‑me, e supõe que sou homem: logo não sou pó.

O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional.

O pó vive? Não.

Pois como é pó o vivente?

O pó sente? Não.

Pois como é pó o sensitivo?

O pó entende e discorre? Não.

Pois como é pó o racional?

Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es?

Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. [ ...]

Em que cuidamos, e em que não cuidamos?

Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós, não se acabe com este dia a memória da morte.

Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz.

E para que esta resolução dure e não seja como outras, tomemos cada dia uma hora em que cuidemos bem naquela hora."

[...]

(Sermão da Quarta-feira de Cinzas- Pe. Antônio Vieira. Roma, 1670).

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

As alternativas contemporâneas para a literatura

A criação literária contemporânea, mesmo compreendida em novas mídias, tem referências em linguagens tradicionais


Pensar hoje a literatura é relacioná-la com novas mídias, é saber sobre quais medidas a tecnologia pode transformá-la e igualmente pensar nas diferentes formas de representação para esse suporte. A tecnologia digital e suas linguagens, como vídeo e música, são fundamentais na transformação e no aperfeiçoamento da tradicional representação literária, como o livro. Portanto, como pensar essa literatura em tempos contemporâneos, ou em tempos dessa tecnologia? Existe, pois, a idéia de síntese de novos gêneros literários conforme novas bases tecnológicas? O papel tradicional do livro está se dissolvendo ou ainda é uma referência para os “novos criadores/autores”?


Alguns estão atentos ao que deve acontecer com os clássicos, e ao verdadeiro papel dessas criações contemporâneas e de seus criadores: até que ponto tamanha tecnologia interfere nas identidades culturais e na preservação das obras clássicas.

UMA NOVA VISÃO

A professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (Fale/Ufal) e pesquisadora na área de Literatura brasileira, Susana Souto, concorda que, por mais clássico que seja o suporte literário, o livro por exemplo, ele não será eliminado por outra mídia. Ao contrário, em meio à presença do áudio book, da internet, o livro ainda tem sua função imbatível. O que acontece está relacionado à intertextualidade, ou mesmo à adaptação de uma obra antiga e sua maior acessibilidade, tanto para leitores quanto para escritores.


Como afirma Susana, “a literatura não se faz no vazio, ela se faz em diálogo com o anteriormente elaborado, então devemos considerar o modo como a tradição é transformada pelo uso das novas tecnologias”; para o livro, “em termos de facilidade de uso, ele ainda é imbatível: não depende de energia elétrica para ser lido nem de equipamento caro, por exemplo, é facilmente transportável e pode ser manuseado em diversas situações”.


LITERATURA E INTERNET

A experiência que hoje se tem com a escrita pode estar irremediavelmente lidaga à internet. Os blogs são variáveis quanto à escrita e à leitura, que estão crescendo e se tonando mais populares. Os antigos escritores são os atuais blogueiros e atestam essa nova possibilidade literária na web. O blogueiro Léo Cardoso é um exemplo de novo escritor que adere à internet como principal instrumento de publicação do seu trabalho, o livro “O Comedor de Lixo”, “primeiro livro interativo da blogosfera brasileira”, como afirma. Através do endereço eletrônico sedentario.org/o-comedor-de-lixo, ele compartilha o que chama de “livro coletivo”, em que seus seguidores, outros blogueiros/escritores, continuam sua “estória” até que seja finalizada. Trata-se de uma verdadeira revolução literária em termos de tecnologia, conforme afirma.


É importante afirmar que todos são escritores, pois "com a internet todos podem se expressar, todos podem criar e até criticar a informação não democrática, muitas vezes dos meios impressos", reitera. Sendo a internet um meio democrático, os novos leitores/escritores são contribuintes para esse novo processo de construção literária. Seu trabalho é uma construção que ainda conta com toda estrutura clássica de um livro: “os rodapés do ‘livro’ são os links que dão acesso aos blogs dos autores", explica. Isso significa que há um grande espaço abrangendo muitos internautas ou colaboradores, algo nunca antes visto em uma obra literária.


Essa forma alternativa tonou-se comum e demonstra que a referência ao tradicional não foi perdida e está marcada nas produções atuais mais interessantes.


TRADIÇÃO

Se existem alternativas maiores para criar ou desenvolver um gênero literário, por meio das novas mídias, não significa que a produção ou preservação das obras antigas, e em sua forma mais tradicional, sejam diminuídas. As tecnologias digitais nada mais fazem do que contribuir para facilitar a leitura de um clássico. Tomando como exemplo as palavras de Italo Calvino, proferidas pela professora Susana, o clássico é um “eterno contemporâneo”.


Segundo dados da E. Life, empresa brasileira de monitoração e análise de mídias sociais, Twiter e Orkut ainda contam com os maiores números de usuários, mas que o primeiro está crescendo. O twiter é uma novidade, em que em pouco tempo muitos estão aderindo aos seus serviços, como micro-blogueiros. Trata-se de uma escrita rápida e que esteja ainda mais ao alcance dos internautas do que o próprio blog. É uma forma de mesmo assim não desvalorizar o hábito da leitura e da escrita, uma referência à tradição da leitura do livro, adaptando-as ao modo de vida contemporâneo e às tecnologias digitais.