
"Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura.
O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem‑no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança.
Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer.
Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó.
Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder‑vos‑ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente.
De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista.
Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es?
Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário?
É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es?
Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo.
A Igreja diz‑me, e supõe que sou homem: logo não sou pó.
O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional.
O pó vive? Não.
Pois como é pó o vivente?
O pó sente? Não.
Pois como é pó o sensitivo?
O pó entende e discorre? Não.
Pois como é pó o racional?
Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es?
Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. [ ...]
Em que cuidamos, e em que não cuidamos?
Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós, não se acabe com este dia a memória da morte.
Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz.
E para que esta resolução dure e não seja como outras, tomemos cada dia uma hora em que cuidemos bem naquela hora."
[...]
(Sermão da Quarta-feira de Cinzas- Pe. Antônio Vieira. Roma, 1670).